19 de outubro de 2010

A poesia da imagem

Hóspedes

Hospedo antepassados.
Dormem em mim
minhas pequenas avós
Contam memórias
bisavós e contemporâneos...
Uso, com naturalidade,
as frases e os gestos do meu avô.
Ouço tias caminhando...
Em um canto, trisavós costuram,
fiam, plantam, colhem...
Tenho construído quartos,
arejado salas, decorado varandas,
a espera dos meus futuros hóspedes.
Até que um dia eu, também,
venha a procurar hospedarias...

1 de setembro de 2010

A poesia da imagem

Guardados

Até quando poderei guardar
o sal e o doce,
a luz e as sombras
dos segredos que só eu sei?

Até quando vou me reportar,
arquivar e me calar
sobre os segredos que só eu sei?

Até quando vou dobrar,
arejar e perfumar
Recorrer, desdobrar
e prevenir de amarelar os segredos que só eu sei?

Até quando vou acalentar,
suprimir, engavetar
emudecer e disfarçar os segredos que só eu sei?

Até quando vou simplesmente amar
não pedir, nem lamentar
o tempo que dediquei aos segredos que só eu sei?

São preciosos e delicados,
divinos e deliciosos os segredos que só eu sei,
porque deles, só eu sei.

6 de agosto de 2010

Abajur

Passarinho no fio
vendo o dia que morre
temendo o frio da noite,
esperando a hora redonda
em que a lua acende o seu abajur amarelo.

E o dia, por fim, morre.
A noite treme de frio,
cobre-se de estrelas,
na exata hora redonda
em que a lua acende o seu abajur amarelo.

Nome

As Rosas,
As Hortências,
Dálias,
Margaridas...
E eu? Que faço eu na primavera
sem ter nome de flor?

2 de junho de 2010

A poesia da imagem

Os excessos

Os excessos me incomodam,
preciso limpá-los.
Tudo claro,
tudo pouco,
branco.
Sempre é época de podas.
Só os galhos necessários,
o espaço para o que há de vir
Uma casa para o botão ir e voltar,
um corpo onde o vento possa circular,
cada coisa com o tempo de ficar.

26 de abril de 2010

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Ecos

Quando eu era pequena
o mundo parecia-me tão grande...
A casa tinha portas enormes,
cadeiras para gigantes,
camas de colchões sem fim...
Deitada no chão vermelho da varanda
o teto era quase um céu.
As telhas formavam-se para chover...
Longe, distante,
alto, alto...
Hoje a minha antiga casa
é um ponto no caminho que passo.
As cadeiras nos acomodam mal,
os colchões parecem caber
tão somente o espaço de deitar.
O teto aproxima-se cada vez mais...
Pequeno, curvado,
como se fosse cair.
Assim,baixo, baixo...
Os ecos dos sorrisos
não me são mais permitidos.

26 de março de 2010

24 de março de 2010

Essa tal solidão

Meu avô falava
de uma solidão intelectual..
Eu um dia lhe perguntei:
Vô, o que é isso?
E ele me respondeu:
_ É não ter com quem partilhar
nossos ideais,
é falar outra língua,
é sentir-se de outro lugar
em meio aos nossos conterrâneos...
Eu hoje sei e sinto plenamente
aquilo que o meu avô sentia...

23 de março de 2010

Desencanto

É tarde...
Os anéis não se agradam mais dos dedos,
os casacos estão impregnados pelo mofo,
as presilhas desencantaram-se dos cachos
e do tom pálido dos cabelos
Ah!Pequena infância que não volta mais...

19 de março de 2010

Ausência

Os papéis amontoam-se sobre a mesa.
Lápis e esferográficas perdem a doçura
e já me parecem sem porquê...
Com o passar do tempo, as folhas amarelam,
tomando para si uma cor de passado...
O vazio se instala perante uma completa
ausência de traços e quimeras.
Há silêncio e pó sobre a mesa
onde os papéis se amontoam
em um arranjo triste.

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A fragilidade

Canecas de chá
fumegam sobre a mesa...
O tempo lá fora está cinza,
tons de roxos tingem a barra do céu
e meu coração teme a chegada da chuva,
pois, é de papel.

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5 de fevereiro de 2010

Alinhavos

Na caixa de agulhas e linhas da minha avó,
havia uma linha que bordava cores na infância
e alinhavava o que de ruim poderia vir.
Eu herdei a caixa, mas,
nunca soube como ela,
costurar o tecido das infâncias
que a mim se apresentaram.

Bordo cores variando nuances, mas,
a linha sempre estoura nos alinhavos...
Venho, dia a dia, aumentando os bordados
para compensar a fragilidade
com que realizo os alinhavos...
Na esperança de que o pior nunca se apresente,
na esperança de que o pior nunca possa vir
intimidado pela variedade de cores,
intimidado pela quantidade de bordados...

O labor

No fogo,
o doce apura o gosto
A fruta serve a polpa
que o açúcar cuida de realçar.
No quintal,
Maria apura o branco
A água lhe serve o meio
que o trabalho cuida de realçar.

A senhora

A elegância da palavra, a sutileza.
A elegância da palavra, a nobreza.
A elegância da palavra, o porte altivo,
o jeito antigo de caminhar.

A palavra é uma senhora
de extrema delicadeza,
uma senhora de modos finos,
de caráter admirável.
Com essa senhora,
sento-me todo dia à mesa,
nas nossas velhas cadeiras
de espaldar alto.
Assim, costuramos e fiamos textos
que o livro da vida a nós confiou.

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