29 de dezembro de 2011

O sonho de Maria

Maria voltou da feira
como quem havia comprado o dia
Proprietária que era agora,
adocicou, a seu gosto, o azedume das manhãs
Para o almoço fez de tudo um pouco,
com seu  modo elegante  e seu vestido quase roto
Separou da vida  o amargo e o caroço
Quando a noite principiou
ela sem titubear, fez das sobras da compra um caldo,
 saboreando-o sem nem mesmo experimentar...
Ela o continha.
Maria foi menina de sonhos sempre descalços,
moça da lida sem flor,
mulher que o peso do coração arqueou
No presente faz remendo
no sentimento que  insisti  em esgarçar
Ela que pensava ter  na feira adquirido o dia,
tem no fundo da sacola
uma carne magra, farinha e fubá
Por favor, não acorde Maria
Deixe que ela tenha o direito de se esquivar
às doses diárias de dor,
ao fogão repleto do que não há,
e à conjugação longínqua do verbo amar.
Deixe Maria dormir.
Que ela construa seus sonhos ao seu bel prazer
escondida da consciência dolorida do sofrer
Dorme Maria, dorme...
Amanhã é dia de feira.
Maria, pode dormir...

27 de dezembro de 2011

Máscaras

Promessas vãs
no afã de iludir
dilaceraram meu coração
No simples afã de iludir
roubastes com máscaras e armas sutis
meu real motivo de sorrir
Promessas vãs,
promessas vãs...

26 de dezembro de 2011

Todas as estrelas foram minhas

Vi, enfim a luz e ela era bela
Perdi-me dentro da tempestade
e ela traduziu-me como ninguém jamais.
Por fim, viestes.
Eu há tanto tempo te chamo...
Contou-me sobre o teu infinito
 e eu vislumbrei possibilidades...
De repente todas as estrelas
eram possíveis e minhas.
A lua antes tão distante
agora era o meu presente mais real
Veio repleta de palavras
que só um poeta teria e tem
Como em toda a vida
me enchestes de gentilezas e doçuras,
compreendestes meu texto, meu avesso,
meu direito e todas as minhas loucuras
Hoje não me parece segunda,
uma segunda-feira qualquer...
Hoje foi meu dia de Natal
que ninguém, nunca irá tirar de mim...

24 de dezembro de 2011

O sofrimento

Dor inclemente,
persistente, pontual....
Que nenhum remédio passa...

Reflexos

A fotografia na parede não diz mais quem sou,
não me reconheço em letras ou versos
como fazia antigamente com grande facilidade
Estou vivenciando o vazio
e no vazio, consequentemente, o nada
O abrir das janelas não me faz falta
e a promessa de dias vindouros
em nada muda a sua ausência
Venho me diluindo, me diluindo ...
Não mais preciso ser quem sou,
preciso apenas ser
aquilo que de mim sobrou.

22 de dezembro de 2011

Desilusão

Pingastes sorrateiramente
no meu mais doce chá
gotas sutis de desilusão.
Eu, por não conhecer  tua intenção,
o  bebi como se fosse amor.
Pareceu-me o mais doce dos chás
até que senti,  quando sorvia e
ainda apreciava o último gole,  
um cheiro suave da seiva com que o  temperastes
Perdi pouco a pouco a delicadeza,
conheci a estranheza,
e desde aquele dia vivo a sentir frio.
Meus olhos desconheceram a luz,
as palavras perderam o tom...
Longe ainda escuto o que me parece
um ensaio de um som.
Desde aquele dia a xícara florida vive só
Nunca mais foi ocupada pelo chá
Vive como eu:
procurando o que conhecia
e desconhecendo o que
pensava saber que existia

15 de dezembro de 2011

Deselegância

O tempo foi
profundamente deselegante
com as tramas do tecido
O fez roto, gasto, puído
Perdeu-se  nesse desgaste
memórias e traços florais
O cabide hoje sustenta
reflexos pardos do que foi
o mais belo tecido
que a renda um dia sobrepôs.

14 de dezembro de 2011

A busca de Maria

Maria, Maria...
Para onde você foi
quando a vida lhe oferecia
quimeras e alegrias?
Fui buscar ao longe,
fui buscar ao longe...
Maria, Maria...
Por que você não foi
quando a vida lhe chamou
ao longe, ao longe?
Estive aqui, por receio
de perder a visita da vida
como foi da última vez
em que fui buscar ao longe,
em que fui buscar ao longe...

6 de dezembro de 2011

No tempo da estranheza

Quando quis, enfim,  ouvir
o mundo apresentou-me o silêncio
Quando já sabia o que dizer, vi-me só
Quando abri os olhos, o jardim se recolheu
a  um sono profundo e aparentemente sem fim...
Meu coração conheceu, assim,
um tempo de estranheza
no qual querer não mais bastava...
Por fim, conformei-me em saber-me viva,
apesar de nada mais ter a possibilidade
de um dia vir a me pertencer.

31 de outubro de 2011

Bonina

A beleza da palavra e o colorido da flor
compunham a riqueza do jardim da minha avó
Pequeno, simples até...
A casa de madeira de pintura desbotada
deixava entrever um rosa seco e o verde como que saído da cana
Era lá, perante o desgaste da casa, que a Bonina florescia
Minha avó chamava-me para vê-la
nas raríssimas vezes em que eu a visitava
Tenho na memória a imagem da flor,
mas, o nome perdeu grande parte do encantamento...
Belo mesmo era ouvi-lo dito por ela,
quando pegando-me pela mão falava:
Venha criança pequena, ver o sorriso doce
que nos oferece a Bonina...

5 de outubro de 2011

Os jarrinhos

No tempo em que havia jarrinhos de flores
sobre as mesas das professoras,
o mundo ainda cabia em mim.
Palavras doces saltavam dos livros,
os porquês eram respondidos,
a vida serenava...
No tempo dos jarrinhos
havia uma certeza de pertencer,
os sabores se acentuavam,
cirandas compunham a noite
e a noite permitia-se, assim, se compor
Repleta de afetos, a correspondência chegava
com a mesma naturalidade
com que o rio escrevia suas voltas
A manhã cheirava a café, a tarde a broas.
O perfume era de alfazema e todo mundo
estava sempre cheiroso e satisfeito com essa essência só
Tudo era simples, adoravelmente simples...
Era certo que a vida serenava e isso era o que bastava.
Tudo isso no tempo em que havia
jarrinhos de flores sobre as mesas das professoras...

9 de setembro de 2011

À toa

À toa, passou a tarde
e com ela o vôo do pássaro e a pressa do ninho
À toa, vi a noite tecer segredos
e guardá-los sob a colcha da escuridão
À toa, colhi serenos na madrugada
tentando esquecer os medos
Assim... À toa
como quem divaga sobre a dor,
como quem busca compreender
pelo perfume, a flor
À toa...
Como se fosse possível viver,
como quem nada quer, tudo querendo...

6 de setembro de 2011

Um certo Manacá

No meu tempo de criança
ouvia a minha avó descrever
a beleza e o perfume do Manacá
Minha imaginação corria como carretel,
bobina nova, graça de menina
O Manacá criou raízes em mim
e em algumas primaveras ele ainda floresce
em meio ao desalinho das bobinas,
ao emaranhado dos carretéis,
no esforço da memória que quase sempre desafina.

18 de agosto de 2011

O querer

Foi assim que quis a rua:
ser só em plena madrugada
Foi assim que quis o vento:
fazer curvas beirando os montes
Foi assim que quis o tempo:
perder-se, tornar-se nebuloso,
esquecer para esquecer-se...
Foi assim que quis quando tudo
parecia nada mais desejar...

2 de agosto de 2011

Nem tanto

A vida estendia-se por sobre o quintal
assim como quem nada quer...
Na quietude das manhãs fazia-me rir
enquanto pintava de vermelho o verde das maçãs
Por vezes, ela me invadia no intuito de agradar
Era nesses momentos que eu me encolhia
como se dissesse a ela: nem tanto, nem tanto...

1 de agosto de 2011

Em fios

Fui desfiando-me de modo tão sutil
que quem estava ao meu lado não notou
O último fio desprendeu-se do centro
como a luz da vela quando extingue seu alimento
Deixei compridos fios por tecer
sobre a feitura da cortina da noite
Com eles faria, ainda, emendas
revelando, talvez muito tardiamente,
os segredos do desenrolar da luz do dia.

15 de julho de 2011

O azul

Na sala quieta, a poeira assentava-se
sobre o guarda-louças.
No quintal  onde a velha cerca repousava,
o vento acordava a roseira
Só eu sonhava na escada que levava
ao sossego da varanda,
encantada com o tecido da vida,
ainda azul, com bolinhas da mesma cor...

Primor

A biblioteca cheirava a saber
e eu tinha fome e sede
Apresentei-me, sem reservas,
àquele mundo silencioso e doce
À minha primeira refeição,
denominei Banquete,
mas, ao continuar, chamei-a Primor.

15 de junho de 2011

A Cristaleira

A cristaleira
dava o tom de requinte a casa
mesmo, que no todo
seu desarranjo se fizesse notar...
No canto reservado, ela mantinha-se
repleta de histórias registradas
em copos e taças de cristal
Minha avó dava o seu toque:
havia sempre um pão com
saborosa manteiga sobre o primeiro vão.
Esse visitante, porém, jamais tirou daquela
cristaleira sua elegância natural
Enquanto as peças antigas mostravam
pelo vidro sua original composição,
ele era o perfume que, com singeleza,
realçava a nobreza e o lume dos cristais.

13 de junho de 2011

Sombrinha

Pequena, desejei ter uma sombrinha.
Não pela proteção que dela teria,
mas, pelo efeito que a pronúncia
do seu nome em mim exercia...

31 de maio de 2011

O que antes era encanto

Quando os sapatos já estão gastos,
quando a linha se desprende da roupa,
quando o tecido, puído,  desfaz o bordado,
o que era encanto perde a graça
e a vida, de repente, leva embora o que até então, 
pertencia tão somente as delícias do coração.
Quando os fios dos cabelos perdem o tom,
quando as mãos, buscam, em vão,
o que antes era fácil e tão somente seu,  
o que era encanto perde a graça...
Discretamente o tempo vai, assim, fechando as portas
e o que era belo, já não se nota:
Lembranças de dias claros,
perfumes de primaveras,
sonhos doces, quimeras,
tornam-se borrões presos em algum canto da memória.
Uma tristeza sem medida invade a casa
onde antes morava a vida
Falta sol, açúcar, sal, falta tempo.
O silêncio toma conta de tudo
e a quietude passa, por fim, a ser normal.

20 de maio de 2011

Árido

Tudo era simples e frágil e eu sabia...
Tudo era doce e o sal não existia
Até que a noite entrou pela porta
quando ainda era hora do dia
Uma aridez sem fim, então, se apresentou
e sem pedir licença habitou em mim
A memória aos poucos se perdeu,
os olhos desconheceram a luz,
a palavra afastou-se da voz...
Vivo agora o inverno
como se outra estação não houvesse
Ouço chamados, mas, não tenho respostas.
Perante a escuridão e a ausência de afetos
cubro-me com retalhos do passado e durmo sobre mim.

11 de abril de 2011

Frio

A porta fechou antes que a luz acendesse,
antes que a mão tocasse a chave.
E lá dentro, perdeu-se o mundo...
Nunca mais houve notícia
do quarto onde a velha máquina descansava,
da sala e seu perfume ,
do sofá  vermelho, já puído,
do vaso em flor, do lume.
Perdeu-se o mundo,
quando a porta recusou-se a esperar,
quando a mão não pode tocar a chave ,
quando os olhos não viram a claridade.
O mundo, o mundo lá dentro se perdeu...
Aqui fora, com um frio que não conhece cobertor,
vaga, sozinha, a dor.

7 de abril de 2011

Cortesia

Maria esqueceu seu canto...
A vida lhe é árida
Na plantação frente à porta
nada brota, nada frutifica
Da janela de Maria
não se vê cor, muito menos companhia
Mas, ela ainda sonha em ser
a eleita de uma cortesia
e ter no brilho da panela que lava
o reflexo mais que perfeito da sua alegria.

Partidas

Os sapatos,
os sapatos
já não me são mais confortáveis
e assim, têm mudado o meu jeito de caminhar

Os óculos,
os óculos
não mais me favorecem ver o horizonte
e, então, tenho vivido de ver ao redor. E só.

Os casacos,
os casacos
já estão com as mangas curtas
como se quisessem tirar de mim
o prazer de me aquecer
então, fico longas horas juntando folhas
para garantir que o outono não irá partir.

A casa,
a casa,
a vida,
a vida...

Poeminha de amor a chuva

Gosto de dias chuvosos...
Parece-me que tenho a alma lavada
Gosto de nuvens pesadas
porque percebo que não carrego quase nada.
Gosto de trovões porque silenciam a minha fala
Mas, os raios...
Deles tenho receio,
pois, chegam sempre antes
do som que produz o meu medo.


18 de março de 2011

Branco

Quando dormi
tive medo de sonhar e acordei
Do perfume tive medo da essência e me lavei
Na música não compreendi a partitura e me calei
Do livro só lia fragmentos e me fechei
Na memória eu buscava e buscando nada achava
A infância, o verde, a casa...
Restou-me o vazio e nele sinto dor e frio.

9 de março de 2011

Registros

A fotografia da infância
perdeu o cheiro das amoras
Os antepassados em preto e branco
com seus traços já desbotados...
O livro que guarda a flor
tem cheiro de bolor e tom amarelado...

O sorrisos são brancos,
mas, se escondem.
Passam o dia mudando de lugar
em uma perigosa brincadeira de enganar

Em um quarto escuro,
as lágrimas não se cansam de radiografar
dores, ausências, mágoas
e tudo mais que de salgado há...